domingo, 21 de novembro de 2010

Olho De Menino triste


Duas pessoas que não conheço dialogam no ônibus e participo, em silêncio, ouvindo e pensando. Adorável
conversa a três na qual apenas dois falam.
M-1 é a moça um. M-2 é a moça dois, a interlocutora. A-T sou eu. Elas conversavam, eu ouvia e pensava.
M-1 – Nada me comove mais que olho de menino triste. Você não tem vontade de chorar?
M-2 – Ah, minha filha, eu nem olho muito. De triste já chega a vida. Finjo que não vejo e só reparo os meninos
alegres, aqueles comunicativos. Criança, para mim, tem que ser feito aquelas dos anúncios: sempre perfeitas,
fortes, gordas, engraçadinhas e modelares.
M-1 – Também acho, mas quando vejo uma criança de olho triste, não consigo me desligar do que ela estará
pedindo sem falar. Fico numa agonia danada querendo adivinhar qual é o seu problema. Tenho certeza de que
ninguém alcança.
A-T – Não adianta, moça. O inconsciente humano, assim como carrega o passado do homem e da espécie,
também tem germens de antecipação do futuro. As dores da humanidade, presentes, passadas e por vir, já
acompanham algumas pessoas. E modelam seus rostos, olhos e mensagens corporais silenciosas...
M-2 – Deixa isso pra lá. A gente não vai salvar o mundo, mesmo. Se você ficar sempre olhando o lado triste quem
acaba na fossa é você e sem nenhum proveito. Fossa pega, menina. E quem fica na fossa não tira ninguém dela.
Sei lá. Se você ficar triste, por causa dele, o menino de olho triste vai ficar mais triste ainda.
M-1 – Pode ser que você tenha razão. Mas se fico negando a parte triste e transformo tudo em alegria, tenho a
sensação de estar enganando minhas crianças (nessa hora, percebi que ambas eram professoras). O que é que vou
fazer, se lá no colégio sinto mais simpatia pelos que ficam quietinhos, morrendo de medo dos outros, loucos de
vontade de brincar mas sem coragem de se enturmar.
A-T – Esses vão ser assim sempre. Claro que terão, na mocidade, um período de reação, no qual tentarão se
extroverter e nesse afã seguramente hão de exagerar. Lentamente, porém, como um rio após a enchente, voltarão
para o leito de sua disposição inata e seguirão pela vida sempre olhando os brinquedos do lado de fora da vitrina.
M-2 – Bobagem sua. Com jeito, você pode ir atraindo os mais encabulados para a brincadeira dos outros. Se eles
sentem que você está com peninha, nunca vão reagir. Vão é se basear na sua pena para ficar ainda mais tristes.
M-1 – E você pensa que não tenho tentado? É que observei que os meninos tristes, mesmo quando incentivados a
brincar com os demais, acabam voltando ao que são, dentro da brincadeira. Os mais alegres e soltos sempre levam
a melhor. Fico pensando se não seria o caso de se inventar uma pedagogia especial para a sensibilidade. Não há
currículo? Não há nota? Não há teste de inteligência e de habilidades psicomotoras? Se tudo isso é importante,
por que a escola não inventa, também, um tipo de currículo ou de pedagogia ou até mesmo escolas especiais para
as crianças mais sensíveis? Acho que, se a gente consegue integrá-las na média, mais do que educando estará é
violentando uma parte boa delas. Você não acha?
M-2 – Não acho, não. Se a escola conseguir formar e aprimorar sensibilidades, você acha que depois, na vida aqui
de fora, haverá a mesma compreensão para os sensíveis? Essa não. Não é o mundo que tem que se adaptar às
pessoas. Elas é que têm que se adaptar ao mundo.
A-T – Estava na hora de saltar. Desci feliz. Uma conversa como esta, de duas professoras, mostra que o mundo
pode ser salvo. Mas fiquei pensando: talvez sejam os meninos tristes que o salvarão, sempre que a escola, um dia,
os entenda e aprenda a cuidar-lhes sensibilidade e emoção da mesma maneira que se lhes aprimora a inteligência.
Mas pedagogias à parte: haverá algo mais apatetante, culposo e dolorido que menino de olho triste?

(Artur da Távola)

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